O PAGADOR DE PROMESSAS DA NOVA GERAÇÃO

PRIMEIRO QUADRO: Parte 1

Devem ser aproximadamente, quatro e meia da manhã e um amontoado de ruas confundem a cabeça do pagador. Uma a direita, que terminava na praia, outra à esquerda indo a qualquer outro lugar desconhecido. Mas a frente, podemos ver uma igreja relativamente modesta, digamos que, sofrida devido a tudo que já vivenciou. Numa das esquinas da rua, tem-se um vendola, que vende desde chinelos de dedo, a cachaça e também roupas de baixo, uma boa alternativa para qualquer cidade pequena; à frente da igreja encontramos uma praça – bem conservada, se comparado ao restante da paisagem – ultrapassando a praça uma capela, era lá que todos os sábados as beatas davam catequese. A estrada era coberta de lajotas irregulares, a igreja localizava-se no centro histórico e sendo histórico, ai de quem ousasse modificar algo. As casas da redondeza eram estragadas pelo tempo, boa parte delas conservava o antigo aspecto rústico, construídas na essência por argamassa vindas do azeite de baleia. Em fim, é uma paisagem tipicamente açoriana, que ainda hoje resiste à avalancha urbanística moderna (aos poucos o pagador descobriria que não seria só na arquitetura, mas também nos usos, costumes e tradições).

A passos lentos, cansado, entra na praça Adão, popularmente conhecido por Zé-do-Ivo. Zé carregava nas costas uma pesada e enorme cruz de madeira, que diferenciava-se de todas as outras cruzes já vistas; a cruz de Zé era colorida, o que indicava facilmente sua opção sexual, ou musical, dependente apenas do ponto de vista e da relatividade do problema. Ivo acompanhava Zé, que era um homem ainda moço, de 30 anos presumíveis, magro, de estatura média. Seu olhar é morto, contemplativo. Suas feições transmitem bondade, tolerância e há em seu rosto um “quê” de inocência. Desigual a Zé, Ivo era um homem forte, alto de boa aparência, que carregava no rosto um “quê” de desconfiança (é fácil prever que Ivo temia algo, algo até então desconhecido). Zé possuía gestos lentos, preguiçosos, como sua maneira de falar. Tem barba de dois ou três dias e traja-se decentemente, embora sua roupa seja mal talhada e esteja amarrotada e suja de poeira.

Zé-do-Ivo vai até o centro da praça e aí pousa sua cruz, equilibrando-a na base e num dos braços, como um cavalete. Está exausto. Tira um lenço do bolso e enxuga o suor da testa.


(olhando a igreja)
É essa. Só pode ser essa.

(Ivo para também, senta-se em um dos bancos da praça, cansado, fastidioso, e deixando já vago, uma revolta que cresce.)

IVO
E agora? Esta fechada.


É cedo ainda, vamos esperar que abra.


IVO
Esperar? Aqui?


Não tem outro jeito.

IVO
(Olha-o com raiva, como quem desejava desfazer toda a situação e voltar para casa. Tira os sapatos, chacoalha os cabelos.)
Estou com calos nos pés, dá até medo olhar chuchu!


Eu também.
(Contorce-se em ritual doloroso. Despe uma das mangas do paletó)
Acho que meus ombros estão em carne viva.

IVO
Bem feito, quem manda não fazer o que eu disse. Pegar um ônibus ou usar aquelas almofadinhas seria uma boa saída.


(Convencido)
Quando fiz a promessa, não falei em almofadinhas e nem mesmo em vir de automóvel.

IVO
(Sarcástico)
Então, não falou, mas podia ter colocado; o santo não iria dizer nada.


Não era direito. Jesus não usou almofadinhas e eu prometi trazer a cruz nas costas como Jesus.

IVO
Não usou por que não deixaram.


Não, nesse negócio de milagres, é preciso ser honesto. Se a gente lograr o santo, perde o crédito. Imagina só numa outra promessa, o santo vai consultar lá os seus assentamentos e dizer: -Ah, você é o Zé-do-Ivo, aquele que já me passou a perna! Pois vá fazer promessa pro demonho que o carregue, seu baduca duma figa! E tem mais: santo é como corintiano, passou calote num, todos os outros já puxam uma 38.

IVO
(Mostrando descontrole em sua masculinidade já perdida)
Mas aquela almofadinha era tão bonitinha, que mal tem coração?


Promessa é promessa e tenho dito
.
IVO
Será que você ainda pretende fazer outra promessa depois desta?
Já não chega?...


Sei não... A gente nunca sabe quando vai precisar. Por isso, é bom ter sempre as contas em dia.

(Ele vai em direção a Igreja, sobe alguns degraus. Examina a fachada da Igreja a procura de qualquer notificação)

IVO
O que você esta procurando?


Qualquer coisa escrita, pra gente saber se é essa mesmo a Igreja de Santo Antônio.

IVO
(Coloca rapidamente os sapatos, sobe os degraus e dirige-se a Zé)
E você já viu igreja com letreiro na porta neguinho?


É que pode não ser essa...

IVO
Claro que é essa. Não lembra o que o vigário falou? Uma igreja pequena, em frente a uma praça, perto de uma vendola...


(Corre os olhos em volta)
Se a gente pudesse perguntar a alguém.

IVO
Essa hora ta todo mundo dormindo, você tem que relaxar um pouco.
(Olha-o quase com raiva).
Todo mundo menos eu, que juntei as trouxas com um pagador de promessas. Escuta Zé...
(Gentilmente acaricia Zé)
Já que a igreja está fechada, a gente podia ir procurar um lugar pra dormir. Você já pensou que beleza uma cama? Eu, você, juntinhos debaixo das cobertas... Huuuumm!


E a cruz?

IVO
Tenho algo, não tão grande, mas que pode lhe dar muita felicidade também!
(Encara-o e continua.)
Você pode deixar a cruz aí e amanhã, de dia...


Podem roubar...

IVO
(Ainda acariciando o rosto de Zé).
Quem é que vai roubar uma cruz, homem de Deus? Pra que serve uma cruz?


(Segurando brutamente as mãos de Ivo)
Tem tanta maldade no mundo. Vamos correr um risco muito grande, depois de ter quase cumprido a promessa. E pense comigo; se me roubassem a cruz, eu ia ter que fazer outra e vir de novo com ela nas costas da cidade até aqui. 36 km.

IVO
(Escapando do “golpe” de Zé)
Pra quê? Você explicava ao santo que tinha sido roubado, ele não ia fazer questão.


A ta. Quando você vai pagar os impostos e perde o dinheiro, o governo perdoa a divida? Uma ova!

IVO
(Mostrando descontrole)
Mas você já pagou a sua promessa. Está ai a Igreja de Santo Antônio, está ai a cruz. Pronto. Agora vamos embora, quero um banho, uma massagem, estou exausto.


Mas aqui não é a Igreja de Santo Antônio. A igreja é da porta pra dentro.

IVO
Não peida na farofa homem! A porta esta fechada e a culpa não é sua. Santo Antônio deve saber disso, que diabo.


(tentando descontrair o ambiente já pesado)
Não peidar na farofa? Não nego minhas origens, é impossível benzinho!
(Ivo ri e Zé continua. Agora pensativo)
Só se eu falasse com ele e explicasse a situação...

IVO
Pois então... Fale!


(Ergue os olhos para o céu, medrosamente e chega a entreabrir os lábios, como se fosse dirigir-se ao santo. Mas perde a coragem.)
Não, não posso...

IVO
Por que não? Santo Antônio não é tão seu amigo... Você não esta em dia com ele?


Estou, mas esse negócio de falar com santo é tão complicado. Santo nunca responde em língua de gente... Quem dera em língua de gay!

IVO
Ora, Zé. Odeio essas brincadeiras preconceituosas.


Eu sei Ivo, sou tão gay quanto você. Mas o fato é que santo responde por sinais, nunca sabemos o que ele pensa. E também, andei 36km, prometi levar a cruz até dentro da igreja, não vou me sujar com o santo por meio metro.

IVO
E pra você não se sujar com o Santo, eu vou ter que dormir no chão, no “hotel do padre”? Ainda por cima um SANTO, bem que podia ser uma santa, mas não, você é baitola até pra fazer promessa.
(Olha-o com raiva e vai deitar-se num dos degraus da escada da Igreja).


Não fale assim do santo. E não me venha com ciúmes religiosos, à cueca do Batman não interfere na calcinha da mulher maravilha.

IVO
(Já deitado)
Não me venha com analogia barata!


Você podia não ter vindo. Quando eu fiz a promessa, não falei em você, só na cruz colorida.

IVO
Agora você diz isso? Dissesse antes.


Não me lembrei. Você também não reclamou.

IVO
Como iria reclamar? O milagre foi um bem concedido a gente. E também, sou o Ivo e você é o Zé-do-Ivo, é meu dever acompanhá-lo.


Então...

Ivo ajeita-se da melhor maneira possível no degrau, demonstrando desgosto a situação. Zé, não menos cansado que ele faz um esforço sobre-humano para não adormecer. Cochila, montando guarda à sua cruz.